21 agosto 2007

Carta ao meu brinquedo favorito

Se eu pudesse ser um brinquedo gostaria de ser você. Sei que vai me perguntar o porquê dessa escolha inusitada – o que certamente pretendo explicar -, mas de antemão quero dizer que tem a ver não comigo, pelo menos não exclusivamente, mas sim com a realidade de outras pessoas; chego já lá.

Lembro-me quando ouvi pela primeira vez a combinação de várias de suas notas. Elas ressoavam a partir do posicionamento dos dedos de uma mão sobre suas cordas, combinados com o dedilhar de dedos da outra mão. Fiquei extasiado. Pensei: se tivéssemos três mãos, que grande orquestra se faria? Talvez, à combinação harmoniosa dos dedos que dedilham com os que posicionam, pudéssemos acrescentar essa terceira mão "mandando ver" no ritmo retumbante das batidas em seu corpo oco e sonoro.

Mesmo gostando muito do que se pode fazer com e através de você, lamento por só ter te conhecido tardiamente. Quando fomos apresentados – tinha 13 anos de idade, e fazia questão de deixar as coisas de criança para trás – você já era um sério instrumento musical. Ah, como gostaria de tê-lo conhecido antes, enquanto "brinquedo", e experimentá-lo sem pensar em harmonias, notas, nem pra quês. Mas não vou só lamentar, pois tenho boas novas. Recentemente precisei redefinir meu conceito de brinquedo a partir de umas letras deixadas por um senhor especial; brinquedo pra mim, agora, é "um desafio a ser vencido". Acho que entendi: interagindo com você e trilhando novas posições e novos dedilhares, sinto-me grandemente desafiado pela imobilidade misteriosa e tensa de seu encordoamento, abrigo tantas possibilidades sonoras. Assim – nem imagina o quanto me alegra reconhecer isso – você volta a ser para mim um brinquedo. Meu querido e encordoado violão.

Tenho pensado a seu respeito, permita-me: você como instrumento, construído e afinado, é música; mas como brinquedo, concebido e experimentado, é arte. Sei que a música é, em si, uma arte, mas ao estabelecer essa diferença, considero que a música está sujeita a contextos e preferências; a arte, contudo, é maior, não se classifica, simplesmente é, e cria um novo ambiente de possibilidades, onde outros horizontes são descortinados e sonhos nascem para alimentar toda uma vida.

Mas e quanto à realidade das pessoas que mencionei, onde é que eu, sendo você, entro? As pessoas em quem estou pensando são, especificamente, crianças e a realidade é o hoje. Elas vão para escolas, interagem com as pessoas, treinam profissões e até aprendem a tocar instrumentos musicais... Mas a realidade do hoje insiste com veemência em uma finalidade para tudo isso: utilidade e produtividade. Mas não necessariamente, felicidade. E isso não é por opção, até porque não lhes têm sido dada opção alguma! Mas por viverem num contexto onde a necessidade dita o próximo passo a ser dado. Assim, temos uma sociedade habituada a não escolher. Essa é a questão! É aí que eu, sendo você, entro: despertar em muitas crianças possibilidades de escolha frente a uma realidade castradora, adversa e injusta.

Meu querido violão, permita-me ser você; mas você "entortado" – como diria o autor das tais letras – de instrumento útil para a música em utopia necessária para a vida. Quero vibrar com o dedilhar de um infanto que, ao ouvir meu som, sonha não só com um bom emprego, mas com um auditório aplaudindo sua música e, especialmente, reconhecendo sua dignidade como gente. Quero ressoar melodicamente com a posição dos pequenos dedos daqueles que tocam sem porquês nem pra quês, só pelo prazer de tocar. Quero ser você para, guardado no armário, emocionar-me com a idéia de que, naquele instante, muitas crianças em suas escolas anseiam pelo momento de me encontrar, tomar-me em seus braços e sonhar, sonhar...

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

HEHEHE... Que eu ainda seja capaz de enxergar esse instrumento como um brinquedo. Alias, fica a dica do violonista Andy Mckee: um cara que foi capaz de fazer do violão um brinquedo belíssimo. Abração e fica na paz!

1:02 AM  

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